sistema financeiro nacional

A Questão da lavagem de dinheiro,o que diz a Lei e o Tribunal dividido

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Já discutimos a questão aqui. E ela volta a inflamar os ministros do Supremo: o que é, afinal de contas, lavagem de dinheiro? A questão foi suscitada pelo ministro Marco Aurélio de Mello, segundo quem está havendo uma interpretação muito vaga e elástica da lei. Nessas horas, não tem jeito, é preciso voltar ao texto. A lei pela qual estão sendo julgados os réus é a 9.613, de 3 de março de 1998 — que foi mudada depois pela 12.683, de 2012. Reproduzo (em azul) o trecho que tem gerado o confronto de pontos de vista.

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
II – de terrorismo;
II – de terrorismo e seu financiamento; (Redação dada pela Lei nº 10.701, de 9.7.2003)
III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;
IV – de extorsão mediante sequestro;
V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;
VI – contra o sistema financeiro nacional;
VII – praticado por organização criminosa.
(…)
§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo;
(…)

Voltei
Noto que a nova lei, de 2012, tornou ainda mais severa a lei e aumentou a possibilidade de se punir alguém por lavagem à medida que simplesmente eliminou a lista de crimes antecedentes. Lava dinheiro quem faz qualquer daquelas coisas previstas no caput com dinheiro oriundo de “infração penal”. Adiante.

Qual é o ponto da discórdia? Querem alguns ministros — e, nesse julgamento, a questão foi originalmente posta pela ministra Rosa Weber — que a ocultação do dinheiro é o que se chama “exaurimento” do crime de corrupção passiva — vale dizer: tal procedimento está implícito no próprio recebimento ilegal de dinheiro. Condenar, nessas circunstâncias, alguém por lavagem também seria um caso de “bis in idem”, de dupla punição por um mesmo crime.

A outra linha
Qual é a outra linha, com a qual concordo, de que é expressão mais visível o ministro Luiz Fux? É aquela que se volta, entendo, a um só tempo, para a literalidade e para o espírito da lei. E aí é preciso ficar atento para as implicações do verbo “dissimular”.

Recupero uma formulação do ministro Ayres Britto que me parece sintetizar bem todas as condenações por lavagem havidas nesse processo. Prestem atenção: “Simular que não se recebeu um dinheiro não é necessariamente lavagem; dissimular que se recebeu o dinheiro não é necessariamente lavagem, mas SIMULAR QUE OUTRO RECEBEU O DINHEIRO, aí, não tem jeito: é lavagem”.

Muito bem! O que fizeram os políticos mensaleiros, quase todos? Participaram de um esquema de SIMULAÇÃO de recebimento de dinheiro por terceiros, de modo a ocultar, sim, tanto o recebimento em si como a origem criminosa dos recursos. Ou qualquer um deles tinha alguma dúvida sobre a ilegalidade daquela grana? Não fosse assim, por que toda aquela engenharia criminosa?

João Paulo Cunha
No fim das contas, o que se está discutindo é a terceira condenação do deputado João Paulo Cunha, o que fatalmente o empurra para a cadeia. Ele foi condenado por lavagem (além de corrupção passiva e peculato) por seis votos a cinco — Cezar Peluso, ainda no tribunal, o absolveu. Logo, se ninguém mudar o voto, condenado está. Mesmo que Teori Zavascki assuma a cadeira a tempo de participar do julgamento, não há o que fazer quanto a esse caso.

Muito bem! A mulher de João Paulo foi pessoalmente ao Banco Rural buscar o que se conhece do que ele recebeu do esquema: R$ 50 mil. Tivesse esse dinheiro entrado na conta de João Paulo, com a devida documentação legal, sem qualquer simulação de recebimento de terceiro, não haveria por que se cogitar de lavagem. Mas não foi isso o que aconteceu.

Seu nome ficou registrado só no gerenciamento paralelo da dinheirama movimentada por Marcos Valério. De fato, o cheque que originou o saque era da SMP&B. E o sacado era a SMP&B. É evidente que se está recorrendo a terceiros para simular que outro recebeu.

Entendeu até agora a maioria dos ministros, e eu estou com eles, que isso é, sim lavagem. Noto que, segundo o texto da lei pela qual estão sendo julgados, o branqueamento propriamente do dinheiro, o seu uso numa atividade legal e regular, é uma modalidade da lavagem, conforme especifica o parágrafo 2º.

Argumento ruim
O ministro Marco Aurélio Mello usou dois argumentos ruins, a meu ver, no seu combate ao entendimento da maioria até aqui. Em tom entre irônico e jocoso, advertiu os advogados criminalistas para o risco de serem acusados de lavagem ao defender um traficante, já que poderiam ser acusados, ao receber seus honorários, de dar aparência legal a um dinheiro de origem ilícita.

É uma ilação despropositada. Se o advogado em questão receber seus honorários segundo as leis e as regras, não há o menor risco de que isso venha a acontecer. Mas, ministro Marco Aurélio, se ele recorrer aos métodos dos mensaleiros, aí, parece, será lavagem, sim. Afinal, advogado de defesa não é cúmplice, como adverte meu colega Augusto Nunes.

Marco Aurélio disse ainda que uma interpretação que ele considera ruim dessa lei pode desmoralizar todo o julgamento. Vênia máxima ao ministro, por quem, frequentemente, tenho admiração, trata-se de um argumento meio terrorista — na verdade, uma bobagem.

 

Por Reinaldo Azevedo

Fonte: Revista Veja – Imagem:(Grupo de Ciências Criminais)

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